sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Nós, a mosca e a vidraça


Gisele estava sentada no sofá quando ouviu aquele zumbido insuportável. Levantou os olhos em direção à janela e percebeu uma daquelas moscas idiotas que não consegue compreender o fato de que, entre ela e o lá fora, há uma camada de vidro.
Tuc, tuc, tuc, bzzzzzzzzzzz, tuc, bzzzzzzzzzzzzz, tuc. E a mosca não desistia.
Gisele a observava e pensava em como aquele animal poderia ser tão estúpido. Não percebia o vidro? Não é possível!
A cada cabeçada, deveria percebê-lo! Recuava, tomava certa distância e, ao invés de mudar a direção, tentava um novo ponto da vidraça!
Cabe dizer que talvez, dentro da alma do pequeno inseto, haja um não sei quê de esperança de que, um dia, a janela se escancare e, com ela, seus sonhos de vôos longos e altos: campos de papoulas, nuvens carregadas, água de riacho, areia. Areia. E mel.
E como será, que depois de tantas e tantas tentativas de se encontrar nos braços abertos de outra pessoa... de vislumbrar o desejo de conviver... de deitar, lado a lado... ainda alguns seres persistam em dar com a cabeça no vidro?
Os braços se fecham. Conviver dá medo. Lado a lado não faz sentido dentro da insegurança – as nossas vidraças. Todos sabemos que isso acontece. Então, por que continuar tentando?
Nossas janelas fechadas são tantas, que não é possível continuar tentando! É ilógico! É irracional! É coisa de mosquito!
O certo é simplesmente nos confortarmos em ficar dentro de casa, do nosso casulo emocional, observando o mundo lá fora distante, passando do outro lado do vidro...
Gisele começou a rir da persistência do bichinho: “Vou pegar o mata-moscas”.
E, ao retornar, parou um segundo. E... apiedou-se.
Porque ali naquela mosca, estava ela, buscando a liberdade de se jogar contra o vidro e surpreender-se com uma lagoa de prazeres inimaginados... janela aberta, mesmo que por alguns instantes...
Mas, tão raro era encontrá-la aberta, que foi desistindo de tentar. E agora sentia um prazer amargo em observar as outras pessoas, como as moscas, cabeceando vidraças...
Uma mistura de compaixão, pena, piedade e...
abriu a janela. Viu a mosca voar para longe. Sentiu o estômago embrulhar e começou a chorar.
Não adianta: voltaria a bater com a cabeça na vidraça... quem sabe alguém, algum dia, deixasse a janela aberta...

E a mosca, a partir da qual se resgatou, ao prover de liberdade...
se esborrachou no pára-brisa do primeiro carro que passou!
(Mas, dizem por aí que valeu a pena...)



Mari Brasil

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Amor de fora, amor de dentro


Camila conheceu Ricardo num bar. Passou os olhos longamente pelo seu corpo, digeriu seus gestos e sentiu aquele toquinho de intuição lhe proporcionar arrepios no braço esquerdo.
Estava com medo, mas não segurou: num ataque de ansiedade, correu lhe perguntar da melodia que haviam discutido outro dia.
Passaram a noite toda ignorando os músicos que se esforçavam a serem notados. Os meninos que buscavam as meninas. As meninas que buscavam mais cervejas. As luzes baixas - os olhos um do outro tinham luzes de feitiço, que apagavam tudo ao redor quando entrecruzados.
Camila convidou-o para a sua casa. Ricardo convidou-a para o seu corpo. E dançaram até a tarde do outro dia, entre os lençóis, os suores, os travesseiros e as promessas que os olhos diziam, sem parar, um ao outro.
Passou um dia. E ela o respirava de memória: sentado na mesa da cozinha desenhando, no guardanapo com seu telefone, a placa de “proibido jogar no lixo”.
Após tantos mais dias sem que ele lhe telefonasse, começou a questionar todos os impulsos que a conduziram àquele encontro: não deveria ter se adiantado à aproximação. Deveria ter esperado que ele viesse. Não deveria tê-lo levado à sua casa. Deveria ter esperado mais um pouco. Não deveria ter trepado com ele! O que ele deve estar pensando? Em como ela é fácil? Em como deve fazer isso com qualquer cara que encontra num bar? Que deve ser mais uma piranha. Que nunca iria ligar. Já deveria mesmo ter jogado o guardanapo pela janela do carro, assim que saiu de seu campo de visão...
Um dia, dois dias, duas semanas, um mês. Acaso dá para saber o que se passa na cabeça do outro? Acaso os olhos são, mesmo, portais da alma? E se todo o prazer do mundo foi sentido naquele momento, há ainda como sentir o que ele sentiu?
E, do medo de que o prazer do outro não lhe corresponda – e não lhe corresponda exatamente da forma como se deseja –, a desaprovação de todos os pensamentos, ações, emoções, que a fizeram se deixar invadir, se expor, nua, se entregar... (a ele?)
Não. Não deveria ter feito nada disso. Bancara a boba, de novo. Estava arrependida... reprovando-se, cada pedacinho, por imaginar que o outro a reprovara.
A verdade é que já há algum tempo desatou a permitir que o julgamento que fazia de si tivesse referências externas. E transformou em maldição as palavras do outro. Mesmo aquelas não ditas. Aquelas que eram suas mesmo, disfarçadas de outra pessoa...
Não interessa dizer que o guardanapo, ela mesma o tinha jogado no lixo, assim que haviam acabado de tomar café. E que ele voltava ao seu bairro todo final de semana procurando a casa onde estava a mulher que o encantara, só com o olhar.
Ou apenas que ele era mais um idiota que não entende nada de momentos mágicos e que acha que ela é sim uma vadia por trepar com ele na primeira vez que saíram juntos.
Interessa que numa terça-feira cinza, tristonha, pensou que as melhores lembranças dos últimos tempos eram as deliciosas sensações que percorreram seu corpo durante a manhã que compartilhou com Ricardo. Quando fechava seus olhos, esta manhã a fazia sorrir...
Sorriu. Compreendeu que aquelas horas fizeram brilhar forte algumas de suas partes que esquecia na razão da rotina, na rotina da razão.
Compreendeu também que não havia entregado nada a Ricardo: havia se exposto a si mesma. E, enfim, se aprovara.
Mari Brasil