sábado, novembro 30, 2013

Detalhes


Um dia ela acordou e estava casada, com filho, conta, sogra, cuecas pra lavar.


Fez o almoço e foi arrumar o armário. No fundo, bem escondida estava uma sacola com algumas roupas que usava antes (de ser mãeesposanora). Foi tomada por uma vontade enorme de vesti-las. Uma vontade de saber como se sentiria, será que seria a mesma? Sim. Teve certeza de que se entrasse naquelas roupas seria a mesma pessoa de antes, com os sonhos, as expectativas e tudo o mais.
Pegou um vestido super sexy...uhm era assim mesmo que queria ser, sexy. Puxou aqui e ali, estava meio apertado, mas podia dar um jeito. Com um alfinete conseguiu fechar a lateral do vestido. Uau! Estava ótima, era só não levantar o braço pra não aparecer o alfinete. Mas, faltava alguma coisa. O que era? Soltar o cabelo. Pronto. Com o cabelo solto se deu conta de que já não lembrava mais como era, a cor, os cachos. Mas, ainda assim alguma coisa estava fora de lugar. Talvez uma maquiagem. Era isso! A maquiagem. Vasculhou a gaveta de baixo do armário do banheiro, encontrou algumas coisas. Um pouco de sombra aqui, um batom, rímel. Estava pronta.

No auge da sua crise de identidade, foi ao supermercado. Deslizou pelos corredores, paquerou o cara do horti-fruti enquanto pesava as bananas, sem levantar o braço. Sorriu e comprou um vinho branco.
Em casa, mais tarde, o marido não percebeu o vestido e o cabelo solto. Ficou surpreso com o preço da banana.

Enquanto bebia o vinho ela só pensava nas maçãs que iria comprar no dia seguinte.

sexta-feira, novembro 29, 2013

Laís e Clara. O contraponto, a complementaridade. 

Laís mora num apartamento apertado na praia de Botafogo, herança de tia avó. Quer ser atriz. No tempo vago faz aulas de teatro e canto. Trabalha de garçonete num requintado restaurante em Ipanema. Entre o vai e vem de gente sofisticada, Laís aos suspiros toda vez que encontra um global, um artista famoso. Em casa, diante do espalho faz as caras e bocas que vê no rosto dos frequentadores do restaurante. Acorda cedo pra caminhar na lagoa, coloca boné, óculos de sol e faz de conta que é famosa. Lá vai ela, arrumando espaço aqui e ali para viver seu sonho.

Clara mora em uma casa em Florianópolis. Trabalha num banco, concurso público. Tem certeza de que tem tudo o que podia querer. Gosta de filmes de terror e de ler romances. Sonha em encontrar o cara, não sabe se vai realizar. Estuda inglês, quer uma promoção. No fim da tarde passa na lagoa e pede um café, puro, mais nada e fica olhando o vai e vem de locais e turistas, fica olhando o vai e vem da água e pensa que podia fazer natação.

Laís e Clara tem em comum uma lagoa. Laís gosta de samba, Clara prefere um pop. Laís pinta os olhos de lápis azul e usa pulseiras exuberantes. Clara de sapatilha e camisa de gola abre o botão de cima pra aparecer um pedacinho do colo. Laís tem paixão por bolsas. Clara tem paixão por imã de geladeira, faz coleção.

Clara cansada da chuva compra passagem para Cuiabá, vai ver uma amiga de infância. Laís, cansada de gente compra passagem para Florianópolis, vai curtir em Jurerê Internacional.
Escala em Guarulhos. Portão de embarque 17. Peregrinação pelos portões 22, 13, 2 e finalmente o embarque. Clara derruba seu livro no chão. Laís pede uma cerveja. Clara ao ver Laís pensa que já a viu em algum lugar, será alguma atriz?

Os olhos no encontro se (re)conhecem. Alguma parte perdida de si  estava naquela outra, alguma coisa que diz que são incompletas.  Laís de salto 15, Clara de sapatilha. Cada uma pensando que podia ser um pouco mais daquela outra, uma sensação de que estavam deixando de viver um pedaço da própria vida, frases, ruas, lugares, silenciados pelas escolhas, pelos caminhos seguidos por cada uma. Por um breve instante dividiram seus mundos, em um breve instante alguma coisa mudou.


Clara segue para Cuiabá e no aeroporto compra um batom vermelho. Laís para Floripa, prende o cabelo e faz de conta que é a mesma.



terça-feira, novembro 19, 2013

Johnny's rice



Depois de todas as palavras já terem sido escritas,
todas as combinações entre elas,
você me oferece esse prato de arroz

Mas quase nada restou pra descrever a fome
constantemente alimentada
de uma poeta já sem letras

então eu aceno quando você passa,
e eu sei que o gesto é sobra
mas é como posso dizer do vento que me flutua

E a cada olhada, destes seus verdes,
os meus transbordam
sentindo saudades das palavras com as quais queria contar

na intimidade com elas,
de mim e de você,

no momento em que os nossos pés deixam de tocar o chão