- Se eu pego aquele bichinho maldito, zunindo no meu ouvido, numa quinta-feira de madrugada. Ah, mas eu mato. Eu pego um alfinete e boto o bicho na mão... e espeto a bundinha dele, várias vezes, devagarzinho, até ele começar a zunir, mas de dor! Bicho desgraçado!
Ela sempre diz essas coisas quando está brava. Deseja tanto ter força, ser a própria força das palavras que cospe violentamente, mas ela tem tanto medo... de machucar. Que machuca ela mesma, apanha quieta, sem chorar por fora, quase sempre. Ela bota seu inimigo no colo e o consola. Sente a sua dor. Engole seco, toda a ira. Compreende, justo quando ele está mais vulnerável e não. Não ataca.
Ela se olha no espelho e se censura, de cabeça, fazendo poses de mulher fatal. Enquanto isso, grita para as amigas que esperam que ela troque de roupa para sair:
- Hoje sim. Essa roupa sim. Vou pegar uns cinco. Tou foda.
Por fora. Por dentro, pensa que está velha demais pra usar essas roupas. Tem vergonha demais de se achar bonita. Acha que deveria ter sido assim antes, porque teria a desculpa de ser uma adolescente. Mas antes não dava, porque era gorda. Mas ainda é meio gorda. Talvez ainda feia. Talvez não saia. Talvez não aquela saia. Talvez uma calça e uns sapatos mais sóbrios, pra cortar esse jeito de moleca que ela insiste em portar. Sua própria doçura, que ela teima em esconder, muito bem. Mas que sempre escapa.
- Toda simpatia tem uma ponta de falsidade. Por isso não sou simpática. Se eu te conhecer hoje, vou ficar só te medindo. Não adianta, não vou conversar. E, se você me forçar, eu vou me esforçar. E vai ser completamente desonesto. E eu gosto de sinceridade. Sempre.
E ela olha nos seus olhos, com aqueles grandes olhos castanhos de cílios compridos e você acredita que ela seja completamente honesta! Besta! Mas tem um inferno queimando sua boca nesse momento. Se fosse, já ia te dizer que a tua roupa não agrada. Que você fala demais ou fala de menos. Que o teu tipinho deveria ser banido da face da Terra. E que você toma mais cerveja do que ela e, por isso, deveria pagar a maior parte da conta. Mas ela guarda. Guarda muito. Porque, nessa frase calada, ela salvou a tua vida. Ou, apenas poupou muita da tua verba a ser gasta com psicanálise. O problema é que, por mais que pense isso, ela admira a tua cara de pau em existir. Ela gosta de você, acha interessante a tua mais completa mediocridade.
- Eu quero aquele cara. E aquele. E aquele outro. Eu não namoro! Eles que me namoram, coitados. Eu não sou fiel. Eu sou da rua. Eu caço. Se não houver caçada, se eu não seduzir, se eu não conquistar, se eu não jogar... a noite perde toda graça. A vida perde toda graça.
Ah, mas essa lingüinha não se agüenta! Se morde! A traição é interna: a maior piranha de todos os tempos não consegue entender que seu pecado, seu jogo, suas conquistas são todas meias. Ela sai à noite, caçando bocas para beijar. E ela beija. Mas sua natureza é monogâmica. Quando ela ama, sua outra boca se fecha. Coitada, (não) fodida por sua própria natureza: sua boceta é monogâmica. Ela não consegue se entregar totalmente ao jogo. Ela não é nem uma meia-foda: não é foda nenhuma. Talvez uns apertões mais quentes, que não a esquentam. E ela volta para casa, sentindo menos frio na sua cabecinha complexa e idiota.
- Eu só quero ter certeza de uma coisa: que o cara com quem eu estou goste de mim, de verdade. Eu não me importo que ele transe com todo um harém. Eu só não quero ver. Não quero saber... e, se ele não gostar mais, eu só quero que me diga. Eu vou chorar minhas pitangas, mas, depois passa.
Certeza? As certezas a espantam. Ela quer a dúvida! O balanço. Ela precisa conquistar sim, todo dia. Mas, não outros... aquele, que ela elegeu no mês. Aquele que, se perceber, a tem nas mãos para sempre. Para sempre mesmo, porque não passa! Ela ainda ama todos os que a deixaram quando ela não queria. Ela ainda tentaria de novo. Ela não se conforma...
Sobre o harém? Ela não liga mesmo. Até que seus olhos o enxerguem...
E aquela raiva condensada dê um pontapé na sua cara. E ela sente os dedos da mão formigando. Falta ar, sua cara está quente. Dói por todo o corpo. E ela se levanta, punhos cerrados, ofegante e cega. E aqueles zumbidos de bichinhos voadores que incomodaram às quintas-feiras, por todos esses anos, são tudo que ela ouve. Todos eles. Ela se levanta e caminha. O ciúmes é o que me move.