quarta-feira, maio 06, 2020

Famílias vizinhas


Talvez você não saiba mas eu tive que me mudar há 1 ano atrás porque estava sofrendo ameaças do meu vizinho do apartamento de cima. Isso ocorreu porque em uma noite a companheira dele gritava muito, dizia que iria morrer e pedia pra que ele parasse e fosse embora da casa dela. Eles tinham dois filhos pequenos, um menino mais velho que devia ter uns 5 anos e uma menina com pouco mais de 1 ano, eu acho. Nessa noite eu percebi (e acredito que todos os vizinhos) que ele poderia mata-la. Não dava mais para ignorar as constantes ameaças que ele fazia a ela, as frequentes agressões verbais que eu ouvia aos seus filhos com quem ele passava os dias enquanto a mulher estava fora no trabalho. As crianças choravam o dia inteiro por causa dos gritos que ele dava. Tenho certeza que ele as sacudia, as pegava com força. Dava pra sentir. Naquele momento, eu realmente senti que precisava agir e protege-la. Liguei para o 180 e fui orientada a chamar a polícia. Somente eles poderiam agir imediatamente. Liguei. Porém cometi o erro de me identificar e quando a viatura chegou pediu para que eu descesse. Me deixaram frente a frente com aquele agressor que me xingava e ameaçava. Os policiais nada faziam para detê-lo. Ao perceber minha situação de total exposição e vulnerabilidade uma outra vizinha veio ao nosso encontro. Disse que também ouvia diariamente as agressões e que não me deixaria ali sozinha. A minha vizinha de porta disse que nada poderia fazer quando eu perguntei pela filha dela advogada que estava na academia. Ao chegar e ver a situação, a advogada ignorou tudo e ao meu pedido e subiu para o conforto de sua casa. Essas duas vizinhas são cidadãs de bem que saíram de casa, nas últimas eleições, vestidas de verde e amarelo para votar. Fui socorrida por aquela vizinha que eu nunca tinha visto antes e por outro casal que morava em bloco distante ao meu mas que era familiar de um amigo. Depois daquele dia acabou minha paz. Temia pela minha vida e, principalmente, pela da minha filha que acordava cedo e saía sozinha para esperar a van escolar longe do alcance de minha visão. Tinha medo de jogar o lixo fora, ao abrir a porta para sair para o trabalho, ao entrar no prédio pensando que ele podia estar com uma faca me esperando no vão da escada. Quando no dia em que o Bolsonaro foi eleito ele gritava: “agora eu vou andar armado e vagabunda nenhuma vai poder falar nada”. Por isso tenho tanta raiva e desprezo pelas pessoas que votaram nesse homem. E mais ainda daquelas que optaram não se posicionar em nome do ódio aos corruptos do PT. Essas pessoas têm sangue nas mãos porque o feminicídio e a violência contra a mulher aumentaram muito desde que esse cara assumiu a presidência.
Mas retomando. Eu já estava tentando juntar uma grana para dar entrada em um apartamento, porém mediante toda a situação eu tive que me apressar. Minha família me ajudou muito com uma grana e consegui vir para cá. Me jurei que não me envolveria com vizinhos, sem qualquer tipo de vínculo, apenas buscando ser educada com aqueles com quem eventualmente eu esbarrasse. Aí veio o corona, a quarentena. E com todo mundo em casa comecei a prestar a atenção nas vozes dos vizinhos. É inevitável. Outro dia um homem gritou com a filha. (Quem nunca?) Tem também uma criança que chora muito logo pela manhã. (Compreensível.) E tem a família com quem divido o vão da cozinha. A família do Gael. Eles são muito divertidos. É um casal bem jovem e o Gael deve ter uns 3 aninhos. Ele é lindo e me lembro que no inicio do ano nos cruzamos no corredor e ele estava vindo da escolinha. Perguntei pra ele como tinha sido a aula, se ele tinha gostado de lá. Lembrei da minha sobrinha que estava começando em uma nova escola e toda aquela emoção que é o começo da vida escolar. Ele quase não falou mas a mãe dele me respondeu. Já me sentia feliz por ter essa família como meus vizinhos antes da pandemia, mas agora eu sou grata. Outro dia a mãe (peço perdão por ter esquecido seu nome já que ela me disse uma vez que veio aqui falar sobre a Net – eu sou péssima com nomes, vocês sabem) estava brincando com ele e fazendo aquelas vozes diferentes. Devia estar com alguns bonecos. Gael ria muito. É visivelmente uma criança feliz. Seu pai é bem engraçado. Canta funk e músicas do Flamengo pra ele. Eu me divirto. Agora a pouco ele disse pro Gael: “eu vou fazer uma comida bem gostosa pra gente, já é?”, e Gael: “Já é!”. Eu não sei qual a história deles, de suas famílias e de repente me vi querendo conhece-los melhor. Eles são negros e acho que é importante dizer isso porque as outras duas famílias de brancos com quem dividimos o andar nunca me cumprimentaram direito. Imagino os olhares que a família do Gael recebe em um condomínio de classe média... Acho importante dizer isso porque talvez você tenha imaginado que aquela família do outro condomínio era negra, que o homem era negro. Pois é. Eram brancos. Muitas dessas coisas que parecem ser teorizadas em estudos e que para alguns é mimimi se materializaram nessa convivência com essas pessoas. Muitas questões me saltaram aos olhos, me motivaram a revisitar meu passado de quando era moradora do Catumbi. Dos meus vizinhos brancos e pretos da Rua Navarro. Do meu amigo até hoje Diogo, homem preto trabalhador, e muito divertido e amável. Ajudar a desconstruir a imagem do negro como ameaça, como alguém essencialmente violento, é fundamental.
Certamente que estou aqui pensando em como aquela família está lá. E tantas outras que estão em isolamento e que têm mulheres e crianças sendo agredidas, violentadas. Li uma reportagem dizendo que o numero de agressões contra mulheres aumentou durante esse período. Muitas delas não têm opção, não têm para onde ir. E o medo é enorme de fazer uma denúncia. Sabemos que não há proteção eficaz e que se o homem quiser matar, ele mata. Por isso é tão importante que os outros, quem está de fora, faça a denúncia. Porque na maioria das vezes a mulher não consegue dar o primeiro passo.
Felizmente eu estou em uma situação confortável agora. Tive condições financeiras para isso, assim como meus vizinhos atuais tiveram. Somos privilegiados por morarmos aqui, mas com certeza partimos de pontos diferentes. Não podemos naturalizar essas trajetórias e apagar as histórias de lutas que estão por trás de muitas dessas famílias, enquanto outras são herdeiras.
Preciso encerrar o texto e quero fazer isso agradecendo à família do Gael. Vocês são um porto seguro para mim nessa quarentena. Gael tem muita sorte de ter vocês. E nós também.

Um comentário:

Mari Brasil disse...

maravilhoso!