Talvez você não saiba mas eu tive que me mudar há 1 ano atrás
porque estava sofrendo ameaças do meu vizinho do apartamento de cima. Isso ocorreu
porque em uma noite a companheira dele gritava muito, dizia que iria morrer e
pedia pra que ele parasse e fosse embora da casa dela. Eles tinham dois filhos
pequenos, um menino mais velho que devia ter uns 5 anos e uma menina com pouco
mais de 1 ano, eu acho. Nessa noite eu percebi (e acredito que todos os
vizinhos) que ele poderia mata-la. Não dava mais para ignorar as constantes
ameaças que ele fazia a ela, as frequentes agressões verbais que eu ouvia aos
seus filhos com quem ele passava os dias enquanto a mulher estava fora no
trabalho. As crianças choravam o dia inteiro por causa dos gritos que ele dava.
Tenho certeza que ele as sacudia, as pegava com força. Dava pra sentir. Naquele
momento, eu realmente senti que precisava agir e protege-la. Liguei para o 180
e fui orientada a chamar a polícia. Somente eles poderiam agir imediatamente.
Liguei. Porém cometi o erro de me identificar e quando a viatura chegou pediu
para que eu descesse. Me deixaram frente a frente com aquele agressor que me
xingava e ameaçava. Os policiais nada faziam para detê-lo. Ao perceber minha
situação de total exposição e vulnerabilidade uma outra vizinha veio ao nosso
encontro. Disse que também ouvia diariamente as agressões e que não me deixaria
ali sozinha. A minha vizinha de porta disse que nada poderia fazer quando eu
perguntei pela filha dela advogada que estava na academia. Ao chegar e ver a
situação, a advogada ignorou tudo e ao meu pedido e subiu para o conforto de
sua casa. Essas duas vizinhas são cidadãs de bem que saíram de casa, nas últimas
eleições, vestidas de verde e amarelo para votar. Fui socorrida por aquela
vizinha que eu nunca tinha visto antes e por outro casal que morava em bloco
distante ao meu mas que era familiar de um amigo. Depois daquele dia acabou
minha paz. Temia pela minha vida e, principalmente, pela da minha filha que
acordava cedo e saía sozinha para esperar a van escolar longe do alcance de
minha visão. Tinha medo de jogar o lixo fora, ao abrir a porta para sair para o
trabalho, ao entrar no prédio pensando que ele podia estar com uma faca me
esperando no vão da escada. Quando no dia em que o Bolsonaro foi eleito ele
gritava: “agora eu vou andar armado e vagabunda nenhuma vai poder falar nada”. Por
isso tenho tanta raiva e desprezo pelas pessoas que votaram nesse homem. E mais
ainda daquelas que optaram não se posicionar em nome do ódio aos corruptos do
PT. Essas pessoas têm sangue nas mãos porque o feminicídio e a violência contra
a mulher aumentaram muito desde que esse cara assumiu a presidência.
Mas retomando. Eu já estava tentando juntar uma grana para
dar entrada em um apartamento, porém mediante toda a situação eu tive que me
apressar. Minha família me ajudou muito com uma grana e consegui vir para cá.
Me jurei que não me envolveria com vizinhos, sem qualquer tipo de vínculo,
apenas buscando ser educada com aqueles com quem eventualmente eu esbarrasse.
Aí veio o corona, a quarentena. E com todo mundo em casa comecei a prestar a atenção
nas vozes dos vizinhos. É inevitável. Outro dia um homem gritou com a filha. (Quem
nunca?) Tem também uma criança que chora muito logo pela manhã. (Compreensível.)
E tem a família com quem divido o vão da cozinha. A família do Gael. Eles são muito
divertidos. É um casal bem jovem e o Gael deve ter uns 3 aninhos. Ele é lindo e
me lembro que no inicio do ano nos cruzamos no corredor e ele estava vindo da
escolinha. Perguntei pra ele como tinha sido a aula, se ele tinha gostado de
lá. Lembrei da minha sobrinha que estava começando em uma nova escola e toda
aquela emoção que é o começo da vida escolar. Ele quase não falou mas a mãe
dele me respondeu. Já me sentia feliz por ter essa família como meus vizinhos
antes da pandemia, mas agora eu sou grata. Outro dia a mãe (peço perdão por ter
esquecido seu nome já que ela me disse uma vez que veio aqui falar
sobre a Net – eu sou péssima com nomes, vocês sabem) estava brincando com ele e
fazendo aquelas vozes diferentes. Devia estar com alguns bonecos. Gael ria
muito. É visivelmente uma criança feliz. Seu pai é bem engraçado. Canta funk e
músicas do Flamengo pra ele. Eu me divirto. Agora a pouco ele disse pro Gael: “eu
vou fazer uma comida bem gostosa pra gente, já é?”, e Gael: “Já é!”. Eu não sei
qual a história deles, de suas famílias e de repente me vi querendo conhece-los
melhor. Eles são negros e acho que é importante dizer isso porque as outras
duas famílias de brancos com quem dividimos o andar nunca me cumprimentaram
direito. Imagino os olhares que a família do Gael recebe em um condomínio de
classe média... Acho importante dizer isso porque talvez você tenha imaginado
que aquela família do outro condomínio era negra, que o homem era negro. Pois é.
Eram brancos. Muitas dessas coisas que parecem ser teorizadas em estudos e que
para alguns é mimimi se materializaram nessa convivência com essas pessoas. Muitas
questões me saltaram aos olhos, me motivaram a revisitar meu passado de quando
era moradora do Catumbi. Dos meus vizinhos brancos e pretos da Rua Navarro. Do meu
amigo até hoje Diogo, homem preto trabalhador, e muito divertido e amável. Ajudar
a desconstruir a imagem do negro como ameaça, como alguém essencialmente
violento, é fundamental.
Certamente que estou aqui pensando em como aquela família
está lá. E tantas outras que estão em isolamento e que têm mulheres e crianças
sendo agredidas, violentadas. Li uma reportagem dizendo que o numero de agressões
contra mulheres aumentou durante esse período. Muitas delas não têm opção, não
têm para onde ir. E o medo é enorme de fazer uma denúncia. Sabemos que não há
proteção eficaz e que se o homem quiser matar, ele mata. Por isso é tão
importante que os outros, quem está de fora, faça a denúncia. Porque na maioria
das vezes a mulher não consegue dar o primeiro passo.
Felizmente eu estou em uma situação confortável agora. Tive
condições financeiras para isso, assim como meus vizinhos atuais tiveram. Somos
privilegiados por morarmos aqui, mas com certeza partimos de pontos diferentes.
Não podemos naturalizar essas trajetórias e apagar as histórias de lutas que
estão por trás de muitas dessas famílias, enquanto outras são herdeiras.
Preciso encerrar o texto e quero fazer isso agradecendo à
família do Gael. Vocês são um porto seguro para mim nessa quarentena. Gael tem
muita sorte de ter vocês. E nós também.
Um comentário:
maravilhoso!
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