terça-feira, julho 01, 2008

Calculadoras são loucas


Atropelei o boneco que saiu de debaixo da caminhonete. Boneco mesmo, que não era gato nem cachorro, um ursinho de pelúcia mais pesado talvez (e estropiado), que me saltou na frente dos faróis, 110 km/h.
Passei em cima mesmo, dois solavancos. Que se a caminhonete da frente não matou, meus pneus terminaram o serviço.
Fiquei chocada com a falta de dor, com a frieza, com não secar nem a garganta, nem um friozinho na barriga e nem uma dorzinha de consciência.
Cheguei em casa e logo encontrei o Drummond.
O Drummond me faz umas companhias quando estou assim: 1+1=2.
Mas ele é um bagaceiro que logo corrompe as minhas contas, de jeito que nem calculadora científica de engenheiro dá conta de descorromper.
Resolvi, então, compartilhar-lhes a companhia. Aí vai:

Amar - Carlos Drummond de Andrade (Antologia poética, 23ª edição)

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Ontem eu ouvi aquela do Cazuza... descobri que ele me descreveu: um blues da piedade. Pessoa de alma bem pequena.



Mas só com o Drummond entendi que eu mereço piedade, porque não sei amar não: 1+1=2.
Fico esperando alguém que caiba nos meus sonhos.
Minhas doações andam limitadas e esperando gratidão.
E andar “ponhetando” por aí... nas palavras fica fácil!
Também peço piedade quando canto. Mas quando amo...
Então só amo nas letras?
E quando 1+1=2 perde todo o sentido?
É quando te descrevo no papel?
Mas, sem letras, à vezes, 1+1 parece poder alcançar todos os números: 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8... e a sua imagem remete à água implícita.
Nesse momento, o chão se dissolve:
Atropelei foi a minha alma com aquele gato hoje!
Ela está na estrada estropiada até agora, esperando você telefonar.
E nenhuma calculadora do mundo está certa nesse momento.

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