quarta-feira, agosto 22, 2007

Aconteceu


de um belo dia eu cruzar o seu caminho e você me assassinar. Assim, como quem ferve uma água para passar um café, passou então, na sua orelha, uma idéia esquisita que apontava o meu falecimento como porta de entrada a alguma dimensão nova, daquelas que se fica imaginando quando se pode relaxar, sabe?
E não é que você me dá quatro tiros e sai andando, como se nada fosse, me largando ali na rua de baixo, enquanto eu ainda ensaiava o meu “bom dia” educado?
Fechei os olhos, enquanto me esparramava na borda da calçada e levava as mãos ao peito. Era sangue?
Era sangue! E era preto e gosmento e com um gosto de ferro que deus me perdoe!
Nessa hora derradeira, ao invés de constatar a dor, a morte, de juntar forças para gritar, pra ver se alguém me ouvia (e me ajudava e me salvava), o meu cérebro e o meu corpo se concentraram na configuração de uma teoria sobre a razão do meu homicídio.
Nenhum sinal de ambulâncias.
Será que eu tinha ofendido esse rapaz? De alguma forma? Xinguei tua formosa progenitora, sem perceber? Desdenhei da tua brilhante genialidade? Fiz pouco caso do teu penteado novo? Do teu emprego novo? Dessa tua (do mundo) sensação dicotômica de amargura/expectativa perante a vida?
Nenhum sinal de médicos.
Haveria você enlouquecido? Perdido a razão durante a guerra interna que travou? Estaria machucado, como um bicho que escapou de mais armadilhas do que possa se lembrar e agora se ressabia de tudo que o cerca? Estaria sob o efeito de drogas alucinógenas e me viu como inimigo? Ou... apenas me viu como um inimigo? Ou... será que sou o inimigo? E, se sou o inimigo, por que sou o inimigo?
Nenhum sinal de pessoas vindo em meu socorro.
Teríamos acordado, cada um em lado oposto da cama, sem nos reconhecer enquanto irmãos? Ou nos reconhecendo enquanto irmãos, como Caim e Abel, disputando o mesmo saco de farinha do qual são feitos os sonhos?
Nenhum sinal de sirenes.
E nada, nada anunciando a minha morte. A não ser essa dor e o gosto de ferro.
Mas... será que não me vêem? Estou ali, jogada na calçada, agonizante!
Na verdade estava longe de agonizar. Tão concentrada na resolução do meu quebra-cabeça inventado, obcecada eu diria, que não emitia som que fosse...
E nem pra você voltar e me dar uma explicação! Ou para se arrepender, recobrar os sentidos e se desculpar pelo imprevisto ato de insanidade.
Nem um médico passando! Nada. Nada!
Ocupada demais para me ocupar do meu próprio resgate, continuei confabulando até que... senti meu bolso vibrar e ouvi a musiquinha ridícula do celular tocando. Era um amigo, perguntando se eu ia ao bar. Respondi que não, pois estava ocupada e desliguei.
Adentrei novamente as minhas neuroses, investigando as razões. Passei mais algumas horas tentando compreender o que havia acontecido. E quando a febre foi se formando uma nuvem de pensamentos desconexos sem relações causais que os suprissem, avaliei que era hora de tomar alguma providência...
Levantei da calçada e tropecei até o ponto de táxi da rua de cima. Dei instruções ao mocinho simpático e preocupado para me levar a um hospital.
No caminho, cheguei à conclusão de que nunca ia compreender o que acontecera. O modo como estruturamos nossos pensares pertence a um lugar sobre o qual não temos nenhum controle, apesar de termos, sempre, essa vontade de controlar tudo o que nos cerca. Inclusive os pensares e os pesares do outro.
Agora, na mesa de cirurgia, as lâmpadas estão se apagando. Dois últimos desejos: que as balas se desalojem do meu peito, para que novamente eu possa estufá-lo e voltar a caminhar, sem medo, pela rua de baixo. E que eu ocupe minha mente com outras coisas quando fizer isso.

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