quinta-feira, outubro 04, 2007

Nômade


A casa não está erguida.
Ela não é seus tijolos: são janelas e frestas que se abrem nas paredes, permitindo a certos estranhos a entrada.
É a caixa de correio e sua estrutura, própria, mas pertencente ao lugar de onde se sonha.
São Marias e Anas observando o projeto, o grande projeto. Planejando-o, através do baralho cigano: um castelo de cartas.
Correntezas de vento desfazendo muralhas vermelhas cobertas de rosas vermelhas. São novas torres de mármore subindo, atrapalhando a vista das paisagens campestres, onde pastam os pulgões e gafanhotos.
São sons de boa noite no rastejar pela grama que, de início, assustam, mas, depois... embalam sono tranqüilo.
Sonhos com o passado indicam como agir no presente, enquanto se presta mais atenção ao futuro: na casa, cai uma telha, abre-se uma goteira. Aqui, agora...
Agora, atentar à respiração: a casa pulsa: suas costas inflam e sopram rumores do porvir. E assim, cerra-se os olhos e aproveita-se as madrugadas.
Sentir o fogão aquecer o ventre, para que pára a nova idéia.
As árvores que visitam o telhado ainda espantam. Suas folhas forram o quintal: um tapete de boas vindas.
A escuridão do quarto mais meu atrapalha alguns cheiros. Suas grades prendem, mas protegem...
Encha-se o quarto de abajures, alumiando a vida de dentro!
O cão que habita a casa anda apoiado apenas nas patas de trás. Caminha como gente, pensa como gente. É cruel como gente: nutre-se de atacar os filhotes de gatos desavisados.
Há que se ter quem olhe os pequenos.
Lá no alto, no muro, duas lanternas acesas: um grande gato preto a tudo observa, guardião do portal. Nada o afeta em suas andanças de um lado a outro do muro longilíneo. Tantas dores sofridas o fizeram bruto e desconfiado. Palavras e toques não o comovem.
As árvores que espalham seus frutos e flores e aromas tornam sua alma mais bela. Dentro de uma delas vive preso um espírito de mulher, que procria seus frutos, mas não se liberta. É um útero imóvel, que não embala bebês.
O espírito não acredita poder existir além da dádiva das raízes. Não acredita nadar, guiar suas ações.
Acredita ser. À mercê.
Apesar de tantas prateleiras, a desordem parece reinar. São os esforços diários para manter tudo no lugar que são falhos, pontuais, são catarses.
A limpeza é toda uma revolução que ocorre de tempos em tempos.
Falta piso no chão. Piso, direto na terra.
Falta uma cortina no box do banheiro, então a água espalha. Falta água no ar, mas não aqui, dentro.
Não há horários que não se possa desobedecer. As horas dos relógios andam diferentes, para mais além: muitos tempos se acabam perdidos.
As tomadas alimentam as músicas que alimentam a esperança da casa a terminar.
Muitos mistérios habitam suas madrugadas, que provocam o medo e dão graça às suas cores. As corujas voam à noite e inspiram romances e contos de horror.

Mas, não há gavetas suficientes e nem coisas suficientes para preenchê-las: tudo na casa... transborda.
Mari Brasil

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