quinta-feira, outubro 18, 2007

Su(b)tilidade


Existe uma certa sutileza em se deixar a vida...

Havia, numa caverna, adormecido, um grande leão dourado. Nunca se soube, na verdade, há quanto tempo ele jazia naquele escuro, como se nem mesmo estivesse lá, alheio a todas as situações mundanas que o rodeavam.
O leão escolhia dormir, enquanto, ao redor, toda a terra se movia.
No dia em que um grande furacão atravessou a mata, as mães, desesperadas, rogavam ao leão que se movesse, ajudando-as a segurar seus filhotes que, de tão leves, eram jogados a todos os cantos pela ventania.
O grande rei abriu suas pálpebras pesadas, ensaiou um rugido – que mais pareceu um ronco – e virou-se para o outro lado, deixando os filhotes à sua própria sorte. “Essa é a lei da natureza. A lei do mais forte. Apenas eles deverão sobreviver”.
Depois do vendaval, ali não se ouviu mais falar em crianças. O vento as havia varrido e a dor de sua ausência era tão grande que ninguém mais poderia se lembrar.
O medo de sofrer novamente tamanha dor fez com os habitantes nem mesmo considerassem a possibilidade de povoar esta infância novamente, fazendo, do lugar, um recinto da juventude até a velhice.
Os jovens, sempre muito livres, corriam por toda a terra, espalhando sua ingênua rebeldia, como vôos de borboletas que acabaram de sair do casulo. Seus corpos vigorosos proviam-nos de energia tamanha, que os tornava capaz de qualquer realização.
Nesta mesma época, um grande lobo chegou ao reino, difundindo as idéias que havia aprendido em suas andanças pelo mundo. Sua postura forte, suas palavras firmes, seu andar pomposo, todo ele, lembrava aos jovens uma figura que há muito haviam esquecido.
Os mais adultos estavam muito ocupados em busca de provisões para dar ouvidos ao lobo. E os velhos consideravam-no apenas mais um falastrão, a quem não valia a pena dedicar sua preciosa sabedoria ou atenção. Mas os jovens... eles o seguiam em todas as caminhadas e obedeciam cegamente a seus ensinamentos, encantados que estavam com sua dedicação.
Foi por essa época que alguns jovens começaram a desaparecer. Primeiramente, deixava-se de ouvir no reino os bés de uma ovelha negra que falava pelos cotovelos. Após uma semana, não se ouviu mais os gritos de um macaco-prego. Após uma outra semana, foi a vez das duas lebres gêmeas. E assim, a cada semana, um dos adolescentes parecia ter sido banido da face da Terra.
Suas mães, já anestesiadas pela dor da perda dos filhotes, nem mesmo tentaram acordar o leão dourado dessa vez. Fizeram alguns esforços de busca, mas, tudo que encontraram foram carcaças. Alguém andava comendo seus jovens filhos...
Até que uma noite, uma coruja decidiu deixar de lado sua caçada noturna e espreitar a reunião do grande lobo na floresta. Ao fim dela, continuou seguindo o lobo, enquanto ele adentrava a mata em companhia de um jovem cervo.
Em um dado momento, o lobo parou frente ao lago, encarou o cervo nos olhos e saltou sobre ele, cravando os dentes em seu pescoço. Nada foi ouvido, nem mesmo um sussurro.
A coruja voou de volta ao reino, desesperada em espalhar a notícia. Mas... quem poderia enfrentar um lobo daquele tamanho?
Fez uma curva, tateando o vento com a ponta das asas e dirigiu-se à caverna do leão dourado. Tentou acordá-lo, gritando seus pios e agitando seu corpo no ar. O leão abriu uma pálpebra e fechou-a novamente. Estava muito cansado e não via motivos para se alarmar. Apenas um velho lobo, comendo alguns jovens fracos e desavisados. É a lei da natureza, não é mesmo?
A coruja, desesperada, avisou a todas as criaturas do reino que era o lobo quem estava devorando os habitantes. Mas ninguém parecia saber o que fazer, além de tentar prender seus filhos em casa e alertá-los sobre a ameaça.
Na semana seguinte, uma jovem leoa bebia água sozinha às margens do rio, quando o lobo sussurrou algumas palavras às suas costas. Apavorada, ela se virou para trás, mas não conseguia reagir. Estava paralisada de medo. Quando o lobo deu um primeiro passo à frente, do fundo do corpo dela veio crescente um som estridente e baixo, que saiu de sua boca na forma de um longo e alto miado.
O leão dourado acordou.
Seu rugido estremeceu a terra inteira. Saiu da sua caverna escura num pulo e correu até o rio, sem perceber sua velocidade, seu caminho, sua fúria. Nada sabia do que o havia feito acordar. Nada daquela vontade imensa de destroçar qualquer que fosse a coisa que ameaçava o ser que lançara para o alto o grito de desespero.
Quando chegou, olhou o grande lobo nos olhos e notou o sangue que escorria da sua boca. Atrás dele, a leoa respirava com dificuldade, deitada numa poça da água vermelha que saía da sua própria garganta.
O lobo sorria em tom de desafio perante toda aquela majestade da qual só ouvira falar. Achou-o menor do que contavam, mais cansado do que contavam, menos imponente do que contavam. Achou-o um fraco.
Era bem verdade que tanto tempo hibernando havia definhado-lhe os músculos e tornado-o mais lento. Apesar disso, o leão não entendia a imensa dor que sentia ao observar a presa do lobo. O imenso ódio que crescia no peito. E a tamanha força que esse ódio lhe dava.
Lançou-se para o lobo a patadas, arrebatando-o muito rapidamente. Cravou suas unhas e presas por todo seu corpo. E, quando percebeu que o lobo já estava morto, não parou de deferir golpes. Queria matá-lo de novo. E de novo. E de novo. Até que daquele corpo, nada mais restasse. Nem mesmo uma lembrança.
Ouviu uma voz às suas costas que dizia “ele já está morto, você pode parar agora”.
Quando se virou, percebeu que todo o reino o observava com curiosidade e admiração. E pena.
O velho leão deu mais um olhar para a filha morta.
Tomou o caminho de volta à caverna, mas, lá, não entrou. Prostrou-se diante dela, como uma esfinge que guarda um portal.
E nunca, nunca mais dormiu.
Mari Brasil

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